morro do Macaco

sábado, junho 24, 2006

sorrisos ameaçadores (23)

–– Djalma dos Santos, grande sambista carioca, bem-vindo a nossa casa – me sorriu a desgraçada, toda metida a besta dando uma de grã-fina e coisa e tal, me estendendo a mão cheia de anéis e dedos.
–– O prazer é todo meu –– menti descaradamente.
–– Deixa te apresentar o meu noivo.
–– Marcolino Galocha, seu criado –– me sorriu cheio de dentes um crioulo engravatado todo metido a besta dando uma de grã-fino coisa e tal e também me apertando a mão com sua mão cheia de dedos e anéis. –– Há muitos anos sou seu fã, seu Djalmão dos Santos, grande excelência do morro do Macaco.
–– Não sou tão velho assim, meu preto... E acho que és muito mais fã das cadeiras da mulata.
–– Rá-rá-rá-rá! Que simpático! Se me permite, gostaria de apresentar meus primos... Todos músicos na orquestra do Além... Também todos seus fãs.

Uma fila de crioulos-armários de mãos estendidas & sorrisos ameaçadores:

–– Francisco Bombardeio!
–– Pedrão Esquadrilha!
–– Antonio Britadeira!
–– Mané Parachoques!
–– Chico Pedregulho!
–– Hermeto Betoneira!
–– Mauro Quebra-muro!
...

Comecei achar toda aquela encenação uma provocação barata. Calmamente olhei para Foguete, que atento balançava o rabo. Foguete me encarou de volta, parando o rabo quieto no lugar. Foguete sentou e piscou... Respirei fundo e arrisquei:

–– Foguete, isca!

Marcolino Galocha bota a mão no pandeiro.

domingo, junho 18, 2006

Gafieira do Além (22)

Escuridão, frio e silêncio. Mas à medida que íamos descendo a escada em caracol, a luz ia aumentando degrau a degrau, o ambiente lentamente ia se tornando mais aconchegante e os sons mais musicais – piano, maracas, bongôs, violão, cavaquinho, sapateado, castanholas, reco-reco, burburinho de gente, risos, gargalhadas, canto distante. E de repente, tudo se iluminou, se abriu, se revelou – e estávamos eu e Foguete no meio de um salão de baile cheio de gente. Gente elegante e perfumada vazando pelo ladrão, todos alegres, todos falando, todos rindo, todos bebendo, todos sambando, rumbiando. Um enorme letreiro néon à nossa frente anunciava:

Clube Recreativo Gafieira Seu Além do Alah

(Já dizia o nego Nepomuceno, meu falecido sábio pai, que nesta cidade, mais cedo ou mais tarde, missa ou culto evangélico, pretos ou brancos, casados ou solteiros, másculos ou efeminados, sempre tudo acaba freneticamente no chão da pista do salão da gafieira.)

Seu Além dos Santos, a primeira grandeza do samba do Jardim de Alah, primo de todos os macacos do Rio de Janeiro e rei de todas as gafieiras do Brasil e do mundo, com seu sorriso de obturações douradas, coração de ouro, braços abertos, terno branco, gravata florida e acordes dissonantes nos recebeu parando o salão:

–– Djalminha, que milagre é esse?! Que maravilhoso milagre é esse! Djalma dos Santos, meu parente, me diga? Me diga? Mas me dê cá antes um abraço! Esse coração ainda bate um compasso de samba? Estás vivo, meu irmãozinho? Me diga?

–– Muito vivinho da silva, meu primo!

–– Mercedes, venha aqui, mulher! – gritou seu Além. – Teu preto chegou!



Gente fina é outra coisa! Eita sovaco cheiroso!

domingo, junho 11, 2006

Submundo Carioca (21)

Resolvi esquadrinhar o submundo carioca – tenho muito tempo e não tenho nada melhor a fazer. Resolvi iniciar minhas pesquisas inspirado por um comentário do velho professor de grego Temístocles Pitangueiras.

─ No Campo de Santana – dramático bradava entre tosses e pigarros o velho professor Testícoles, – existe uma boca de lobo que nada mais nada menos é a boca do submundo dos submundos, a bocarra da desesperança, o boqueirão dos mortos, a bocaça do hades bem no meio da nossa capital!

Durante três dias mapeei as bocas de lobos do Campo de Santana. O mapa resultou extremamente intrincado, um verdadeiro samba do crioulo doudo. Depois durante um par de noites, munido de pé-de-cabra, farolete e o diabo a quatro, passei a arrombar todas as bocas de lobo, uma a uma silenciosa e minuciosamente, conforme meu mapa. Me acompanhava na empreitada o cachorro Foguete sempre balançando o seu rabo.

Nossos esforços foram todos vãos: não encontramos nada mais do que nada além de ratos e baratas. Mas uma noite demos conta que sempre por volta da meia-noite uma fila se formava organizadamente ao lado da pica da dona Maria – jocosa alcunha do chafariz central, no meio da praça. Entramos na fila onde homens silenciosos, mulheres silenciosas, todos taciturnos esperavam. Não fizemos perguntas, silenciosos esperamos. No peito iroso ferro, nos órgãos estáticos gelo, gemidos na alma indignada. Nossa vez chegou e juntos afundamos nas sombras.


Professor Testícoles fotografado pelo primo Altamirando, também seu aluno no saudoso D.Pedro II.



sábado, junho 03, 2006

itinerário canino (20)

Encontrei o cabo Peixoto no Campo das Lavadeiras – para variar o cabo estava bêbado feito um peru de natal. Mas me reconheceu e me mandou erguer a cabeça, tomar tenência, aprumar na vida e coisa e tal. O cabo vinha acompanhado por Foguete, o vira-lata da dona Gertrude. Me disse que o vira-lata Foguete era o maior conhecedor do bas-fond carioca – não existia bordel, casa de massagem, boate, boca de meretrício que o vira-lata não conhecesse em detalhe.

— É um completo pervertido! É paparicado por todas as alcoviteiras e cafetinas do Mangue. Um chupador de manga de marca maior! – me disse entre gracejos e risotas.

Confidenciou-me que gostava de seguir o Foguete nas suas andanças e estripulias pela cidade e convidou-me a juntar-se a eles na aventura que aquela tarde de sol e calor prometia. Agradeci, mas preferia ficar ali sentado na escadaria do palácio da Aclamação, largado do mundo, quieto, sossegado, mudo, apenas observando o movimento silencioso dos barcos.

— Repara, seu Djalma – gritou já longe o cabo Peixoto. – O miserável não pára de balançar o rabo! Que pândego!


Dona Alice, dona Gertrude e Foguete na coleira (disfarçado de cachorro de madame).